segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O HOMEM INVISÍVEL

O tema é controverso, não tenho dúvidas. Mas, de certas coisas, sem fazê-las, não há como saber o resultado. Pois bem, eu tentei ajudar um morador de rua a retomar sua vida. Aproveitei que teria uma semana de férias, de 16 a 22 de agosto. Durou menos de uma semana a tentativa, como poderão ler na história que se segue.

Eu conheci JC há alguns meses, sentado nas calçadas do bairro Azenha, onde trabalho. Me chamava a atenção o fato de que ele evitava os bandos de moradores de rua, andando quase sempre sozinho. Tudo começou como sempre: uma moeda. Independentemente do que digam ou aconselhem, sim, eu sempre dou moedas para pessoas "em situação de rua". Eu fui morador de rua quando vivi em São Paulo e sei bem a diferença (principalmente psicológica) que isso pode fazer para quem vive numa calçada.

Mas, eu ia dizendo, nossos primeiros contatos foram por causa das moedas. Muito lentamente as primeiras palavras foram sendo trocadas e, a cada vez, eu me surpreendia com a facilidade de comunicação e a capacidade de articulação de pensamentos e idéias de JC. Sim, eu sei, o preconceito determina que moradores de rua são pessoas no limite da ignorância. Eu também carrego esse preconceito.

Pois bem, a idéia foi surgindo aos poucos. Num final de tarde em que lhe ofereci 2 reais, ele me disse assim: "que bom esse dinheirinho, pois essa noite vai ser muito fria..." Eu sou um cara grande, forte e, segundo meus inimigos, frio e arrogante. E mesmo assim, aquilo que me cortou o coração. Lembrei, obviamente, das noites que passei em Sampa, tentando dormir pelas praças, escapando da chuva embaixo de marquises. Era época de verão. Tentei imaginar como teria sido se fossem noites de inverno. Falei com um amigo que tem uma sala desocupada no prédio onde moro e ele concordou com a idéia de usar a sala para fazer uma ponte entre a calçada e a retomada da vida de JC. Inclusive, ele e a namorada me deram carona para buscá-lo na rua numa tarde de domingo, já que continuo com o santana parado, esperando refazer o fundo. Tive o cuidado de forrar o banco do carro deles com uma coberta, pois tinha idéia do cheiro que ficaria grudado no estofado. É um cheiro quase indescritível, que gruda nas coisas e nos lugares por onde a pessoa passa.

No domingo mesmo tive o primeiro choque: na sexta eu lhe dera dinheiro para comprar algo para comer, mas ele gastou quase tudo em bebida. Estava meio fora de si quando o encontramos às duas da tarde. Tive que acordá-lo e convencê-lo a entrar no carro, pois só falava em ir conseguir um prato de sopa.

Sobre a bebida, vale um parágrafo. Eu sei — e não critico — que moradores de rua bebem para suportar a falta de comida, entre tantas outras faltas. Eu passei quatro dias inteiros sem comer e sei o que passa pela cabeça de quem está com fome. Mas, em todas as conversas com JC, ao longo de meses, nunca o encontrara bêbado. E não conseguia imaginá-lo como um alcoólatra.

Bom, resumindo, ele ganhou roupas, calçado, itens de higiene, muitas coisas novas e não apenas reaproveitadas. Ganhou a mesma comida que eu e Sarah comemos, um bom colchão, cobertas e travesseiros, e, principalmente, um teto sobre a cabeça.

Curiosamente, ele passou dois dias se queixando de dores nas costas e de dor de cabeça, coisa que nunca fizera nas nossas conversas pelas calçadas. Só parou de gemer e se queixar quando disse-lhe que aquilo estava incomodando e que ele devia pensar: ruim mesmo estava na rua.

Nesse meio tempo, baseado em informações que ele me passou, fiz contato por email e MSN com a única irmã que ele tem e que mora em Toronto. Ela, aos poucos, foi me contando toda a história deles, de como ela, a mãe deles e outras pessoas tentaram ajudá-lo ao longo de muitos anos, de como nunca deu certo, me contou dos filhos que não querem nem ouvir falar dele e de como ele chegou nesse ponto, aos 57 anos de idade. Bem, eu já tinha tomado a atitude e tinha que lidar com isso agora.

Na segunda-feira, JC estava de banho tomado, roupa limpa, cabelo cortado e barba feita, quando saímos para ir a uma agência da Caixa retirar um benefício de Bolsa Família no valor de R$ 68,00 a que ele tem direito. Há três meses não ia retirar pois estava sem documento. No sábado, antes de recolhê-lo eu resgatei sua carteira de identidade de uma dessas entidades que ajudam pessoas carentes e sem nenhuma perspectiva. À parte o fato de que é um trabalho maravilhoso, o lugar é deprimente e, a meu ver, insuportável para quem tem certa noção das coisas, caso de JC. Sim, seria o meu caso também.

Além de estar sem documento, outro fato é que ele nem poderia entrar no banco naquele estado em que se encontrava. O cheiro de uma pessoa nessa situação é tão forte que toma conta de onde ela passa ou onde toca. Enfim, depois de retirarmos o valor de três meses do benefício, ele me disse que iria procurar o pessoal da FASC, uma entidade pública de assistência social. Sugeri que deixasse a maior parte dos 204 reais comigo, pois sei bem das tentações que rondam as ruas da cidade. Ele concordou e se foi. Naquela segunda-feira, retornou antes do final da tarde e sem nenhum sinal de bebida.

Na terça pela manhã, disse-me que precisava procurar uma médica que já o atendera, no Centro de Saúde Santa Marta, no centro da cidade. Disse-me que era bipolar e que precisava de medicação. Nesse mesmo dia, no final da tarde, eu tinha uma paciente de massagem e saí de casa às 5 da tarde. Quando retornei, às 9 da noite, tomei um grande susto: ele estava deitado na calçada em frente ao prédio! Fui levantá-lo e estava caindo de bêbado. Levei-o para a sala no quinto andar, mandei (no sentido literal da palavra) que fosse tomar um banho e disse-lhe que falaríamos na quarta pela manhã. Como todo bêbado, estava valente e metido a fazer piada. Não tomou uns petelecos por muito pouco.

Na quarta, ficamos esperando uma ligação da irmã dele, que acabou não ocorrendo por que não foi muito bem combinado. Durante vinte minutos ele ficou sentado a minha frente e dei um pito tão grande que ele parecia ter uns dez anos de idade. Estava numa agonia terrível, dizendo que conversar com a mãe dele (que mora junto com a irmã) só iria fazê-la sofrer. Percebi o nítido alívio quando eu desisti de esperar a ligação. Saiu de novo dizendo que dessa vez sim, iria falar com a médica, que no dia anterior não conseguira, que encontrara uns colegas de rua, que ofereceram-lhe bebida e ele sentou para conversar e acabou bebendo. Que sabia que isso era errado. Que sabia que eu estava certo. Que queria dar um jeito em tudo e que queria aproveitar a oportunidade que o "anjo Wladimir" lhe dera. Que eu tinha razão quando disse-lhe que, desse jeito, iria morrer numa calçada, esperando para ser enterrado como indigente. Disse isso e saiu.

Saiu e não voltou. Foi a última vez que o vi de perto e que falei com ele. Agora, eventualmente, o vejo da janela do escritório, sentado na mesma calçada. De tudo que lhe demos, só restou uma camiseta de manga longa e uma calça jeans. O tênis novo e a jaqueta praticamente nova já era. Já está sujo novamente. Ao meio-dia e nos finais de tarde ele some daqui. Sabe que era nesses horários que sempre nos encontramos. Está me evitando. Preferiu a "liberdade da calçada" a ter que pagar o preço de seguir regras para retomar a vida. Não me pediu o dinheiro que estava comigo. Estou combinando com a irmã dele um jeito de enviar-lhe o dinheiro. Ela pediu que eu esperasse, agarrando-se numa esperança de que ele repense e me procure.

Agora, todos os dias eu penso no que ele me disse numa das conversas: "as pessoas passam e não me veem... é como se eu fosse invisível..."

E eu, de "anjo" fui eleito a capeta, desses que a gente evita de cruzar a qualquer custo. Vida estranha, esta que vivemos...