sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Paciência


A imagem congelou na memória mesmo depois que o ônibus afastou-se. Um homem vestido de maneira simples, sentado em um banco da praça, com um livro grosso aberto em seu colo. Ao seu lado, no chão, uma sacola de viagem sobre a qual acomoda-se um pequeno cachorro branco.

Enquanto o homem lê, numa tentativa desesperada de reencontrar sua condição humana, o cachorro espera pacientemente para relembrá-lo de nossa condição animal e da única maneira de amar que não exige nada além de disposição.


Pequena crônica escrita no encontro de ontem da oficina literária. A coordenadora mostrou uma imagem através do projetor e pediu que escrevêssemos sobre ela.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Simplesmente amor


No começo de 2011, creio que em fevereiro, uns amigos me ligaram e me perguntaram se eu teria como abrigar uma gatinha que estava vivendo em uma calçada, em condições precárias. Fui com o velho santana até lá, levei a caixa de transporte e trouxe-a para casa. Devia ter uns quatro meses na época. Era magrela, bastante afetuosa comigo e com Sarah, mas arisca com estranhos e com os outros gatos da casa. Recebeu o nome de Bia, mas logo virou Bibí. Atualmente eu a chamo mais de Fofa do que de Bibí. Ela tem um miado fofo, um jeito de caminhar fofo, nunca puxa briga com ninguém e, como engordou ao longo desse ano e meio, ficou, literalmente, uma fofa.

No começo ela ficou bastante isolada pois quase nunca chegava perto dos outros gatos e, quando o fazia, era rejeitada. Foi assim até que aqueles mesmos amigos me ligaram dizendo que tinham abandonado um bebezinho ali na calçada e eles não sabiam o que fazer. Eu perguntei se tinham como trazê-lo e no mesmo dia recebi a Bebê. Não tinha como dar outro nome a ela. Cabia na palma da minha mão. Pequena, esquálida, pele e osso. Desidratada, desnutrida e com pneumonia. Era difícil de entender o que mantinha aquele ser minúsculo ainda vivo. Sarah me disse, mais de uma vez, que ela não sobreviveria. No ano anterior eu tinha perdido um gatinho, o Léozinho, que trouxera de uma calçada e durou apenas três dias. À parte o fato de não ter conseguido salvá-lo (estava com uma infecção intestinal monstro), me consolava o fato de que ele morreu cercado de afeto e atenção, acomodado em meu colo, sem emitir um único gemido de sofrimento como aqueles que emitia quando o encontrei, enquanto as pessoas passavam totalmente indiferentes à sua dor.

Intimamente decidi que não perderia a Bebê. Dei-lhe antibiótico, muita água e comidinha pastosa, pois não tinha forças para mastigar. Além disso, ela passou três dias e três noites acomodada em minha mão esquerda de onde só saía para satisfazer suas necessidades. Mesmo quase morrendo, ela manifestava enfaticamente a intenção de fazer xixi e cocô a tempo de colocá-la em uma bandejinha baixa com areia reservada especialmente para o uso dela. Na hora de dormir, eu me deitava bem devagar para que ela fosse se acomodando com minha mão sobre o peito. Quando eu já estava completamente deitado, ela saía de minha mão e se acomodava na curva do meu pescoço, num encaixe perfeito. E assim dormíamos, eu sem me mexer, ela respirando cada vez melhor. Às vezes eu ficava um bom tempo acordado ouvindo o som da sua respiração e só dormia quando ia baixando de volume, sinal de que ela estava totalmente relaxada, apesar de todo o mal estar que devia estar sentindo.

Com a chegada da Bebê uma coisa muito curiosa aconteceu com a Fofa. Ela passou a seguir-nos onde íamos e quando eu soltava a Bebê no chão, ela a lambia e se posicionava como se precisasse defendê-la. Os outros ficavam em volta, curiosos com aquele serzinho fazendo um barulho estranho (parecido com uma pessoa no mais alto grau de uma asma), mas nenhum se atrevia a chegar perto. Fofa assumiu o papel de irmã mais velha da Bebê e até dormia ao nosso lado. Eu tinha inclusive que ficar atento pela diferença de tamanho das duas para que a Fofa não machucasse a Bebê.

No quarto dia, a respiração da Bebê praticamente normalizou e ela passou a caminhar de forma segura. Aos poucos fui deixando as duas brincarem sozinhas, mesmo inspirando cuidados. Mesmo hoje, a Fofa tem três vezes o tamanho da Bebê. Imaginem naquela época...

O tempo passou e muita coisa mudou na minha vida. Uma separação, uma guinada profissional, algumas atitudes que me tiraram da concha em que me colocara voluntariamente.

A Bebê cresceu (em termos, hehehe) e tornou-se uma gatinha muito lindinha, sapeca e afetuosa. Quando fez um ano, eu comecei a desconfiar que ela nunca iria ter o primeiro cio. Somente na semana passada, um ano e quatro meses depois de chegar aqui, ela tornou-se uma gatinha adulta. Para relembrar com ênfase sua chegada, foram vários dias sem dormir, com sua cantoria em busca de um gatinho. Nesse meio tempo, alguns contatos do facebook divulgaram campanhas de castração solidária. Liguei para três delas e me decidi pela mais econômica. Para quem não sabe, na castração solidária, grupos de veterinários se reúnem em certos dias, em geral aos finais de semana, para atender o máximo possível de animais. O valor varia de 50 a 100 reais. A diferença para uma clínica particular é enorme. Numa dessas uma castração pode custar até 300 reais, fora medicamentos pós-cirúrgicos. O único senão é que você não vai pegar o animal no outro dia, já acordado e com saudade de casa. Você o traz uma ou duas horas depois, ainda sob o efeito da anestesia, o que não é uma visão muito agradável.

Foi assim que a Bebê voltou ontem, depois de ser castrada pelo pessoal da Pet Móvel, na Vila Ipiranga. Pelo facebook relatei minha agonia, mesmo com toda a experiência de tantos felinos já castrados.

Mas, teve um detalhe que eu omiti. Fofa passou o tempo todo pertinho da Bebê, cuidando dela enquanto não tinha reações. E está grudada com ela desde às 23 horas de ontem, quando Bebê finalmente começou a se levantar.

São quase cinco da tarde e lá fora está chuvoso e bem frio. Meu paciente desmarcou em cima do laço, me deixando com tempo para escrever esse post. Ao meu lado, as duas estão dormindo bem juntinhas. Todas as outras estão dormindo em sua cama coletiva em outro quarto.

Fico olhando para esses pequenos seres e me perguntando: o ser humano será capaz um dia de amar dessa forma? Um amor desprovido de interesses, amar por amar, simplesmente. E será possível que as pessoas parem de gastar tempo e dinheiro em futilidades, em supérfluos, em coisas inúteis? Coisas que não conseguem explicar o verdadeiro sentido da vida. Se isso um dia acontecer, então esse planeta será, finalmente, um lugar bom de se viver.

Fofa cheia de cuidados enquanto Bebê se recupera da cirurgia de castração.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Para onde vão os objetos perdidos


Gatos e duendes não se dão bem. Segundo os esotéricos, gatos existem com o objetivo de proteger os seres humanos. Os duendes, por sua vez, são como meninos levados, sempre aprontando alguma. E, dizem os mais antigos, por vezes são cruéis.

Quando parei para pensar nisso, não tive dúvida: fui buscar aquele gatinho de apenas um mês para morar aqui em casa. Esperei que ele perdesse aquele jeito de bebezinho e passei a treiná-lo na arte de ataque e defesa. Dudú tornou-se praticamente um ninja. Um dia, olhei para ele e pensei, sorrindo:
_ Duendes, tremei!

Passado um certo tempo me dei conta de que não estava funcionando. Foi quando encontrei a Nina, uma gatinha muito querida e valente, perdida em meio a uma montanha de lixo numa calçada perto daqui. Agora, com dois gatos juntos, não tive dúvida em esbravejar:
_ Se ferraram, duendes!

Nina estava grávida quando chegou e ainda transou com o Dudú. Dessa união nasceram quatro gatinhas: Nêga, Duda, Guida e Tim. Seis gatos em casa!
_ Totalmente protegido dos duendes! _ pensei, exultante.

No entanto, o tempo encarregou-se de mostrar que ainda não era o suficiente. Quando eu já estava desanimado, uns amigos ligaram falando de duas gatinhas que viviam numa calçada. Não tive dúvida: tragam as duas, rápido! E assim chegaram a Bibí e a Bebê.

Agora sim, com oito gatos, eu me sentia o general de um agrupamento totalmente eficaz contra os malévolos duendes! O doce aroma da vitória chegando em minhas narinas ofegantes!

Doce ilusão. Pura bobagem. Hoje em dia tenho em casa oito cabecinhas sedentas de cafuné e, mesmo assim, os duendes continuam levando coisas das quais nunca mais ouço falar.

Crônica escrita como tema da aula de hoje na Oficina Literária que estou fazendo na Casa de Cultura Mário Quintana, com a Ana Mello.